"Ninguém é tão ignorante que não tenha algo a ensinar. Ninguém é tão sábio que não tenha algo a aprender." Pascal

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Mai 16

Seminário

"Timor-Leste e Portugal: desafios e estratégias a uma língua comum"

6 de maio de 2016

Salão do INFORDEPE

 

A estabilização da língua portuguesa em Timor-Leste:

desmontando alguns mitos

 

Ricardo Antunes

Professor de língua portuguesa no Parlamento nacional de Timor-Leste

rjorge.antunes@gmail.com

 

Gostaria de começar por agradecer à Embaixada de Portugal em Díli, na pessoa do senhor Embaixador, o amável convite que me foi endereçado no sentido de aqui poder falar hoje.

É simbólico que este evento decorra precisamente no INFORDEPE, instituição que tem, no seu ADN, a questão da formação de professores, já que uma das ideias que eu venho defendendo é a de que será pela escola que o português de afirmará em Timor-Leste.

Essa é, como muitos aqui sabem, uma das minhas paixões. Em Portugal trabalhei na formação de professores durante quase 15 anos e cá, em Timor, mantenho contacto regular com essa área.

Foi aliás por causa dela que cá vim pela primeira vez, em 2002. Nessa altura, no âmbito do meu mestrado, pude estudar a situação do ensino do português em Timor-Leste, desde a chegada dos portugueses, no século XVI, até 2002-2003, e publiquei então a primeira tese de mestrado sobre a didática do português em Timor-Leste.

Na sequência desse estudo, continuei muito atento à forma como o ensino da língua portuguesa se ia desenvolvendo por cá, porque, depois de estudar e conhecer a realidade timorense, sempre acreditei que seria através do sistema de ensino que a língua poderia afirmar-se em Timor-Leste.

Em 2014, tive a oportunidade de voltar. E só poderia ter voltado para continuar a contribuição para este desígnio: o de afirmar a língua portuguesa em Timor-Leste. Voltei para a UNTL, onde tinha trabalhado em 2002 e agora para o Parlamento, onde também trabalhei em 2002, numa das experiências mais enriquecedoras que tive até hoje como professor, já que o senhor Presidente do Parlamento à época, o Maun Boot Lú-Olo, interrompia as sessões religiosamente à hora da aula e todos os deputados iam para as aulas de português. Coube-me a turma dos mais avançados, chefes de bancada, e outros Ema boot, e muitas vezes as aulas eram uma espécie de prolongamento das discussões do plenário, só que agora, em português.

O ensino da língua portuguesa em Timor-Leste foi evoluindo e mudou em muitos aspetos desde essa altura.

Como alguns se recordarão, a fase pós-99 foi complexa. Não havia nada. Foi necessário recrutar professores, muitas vezes sem habilitações adequadas e um dos critérios base era o de saber português. Realizaram-se vários cursos de capacitação em língua portuguesa, dirigidos aos professores. Multiplicaram-se os projetos e as formas de intervenção. As escolas tinham desaparecido e não havia nada a não ser vontade. Hoje, é com prazer que observo escolas equipadas, professores formados, currículos, manuais.

Tudo isto, não faz de mim um especialista. Sei algumas coisas, mas o campo de estudo desta área multiplicou-se de tal forma que são necessários muitos investigadores para que se vá conseguindo acompanhar a realidade. E eles andam aí. Portugueses, brasileiros, e cada vez mais timorenses têm avançado para estudos de mestrado e doutoramento, bem como outras publicações, sobre esta matéria, a mostrar que há o que investigar e que vai crescendo massa crítica, tão essencial neste projeto.

E é aqui que entra a minha intervenção de hoje.

Quando me convidaram, há umas semanas, pensei no que poderia vir aqui dizer. Não queria fazer desta intervenção uma apresentação muito técnica, por isso revisitei este percurso de quase 15 anos, desde 2002 até agora.

E nessa revisitação, saltaram-me à vista alguns mitos que têm, de alguma forma, condicionado o ensino da LP aqui em Timor, e têm até, parece-me, condicionado o discurso político em torno da questão.

Bom, eu sou um homem das Clássicas. Formei-me em Grego e Latim e foi dessa base, das línguas clássicas, que me tornei professor de português. Por isso interesso-me muito pela etimologia, ela origem das palavras. Mito vem do grego mýthos, que significa «palavra expressa» e depois do latim mythu-, «fábula; mito», e o significado desta palavra é uma narrativa fabulosa de origem popular; uma lenda; uma elaboração do espírito essencialmente ou puramente imaginativa, ou ainda uma representação falsa e simplista, mas geralmente admitida por todos os membros de um grupo.

Mito também pode ser o relato das proezas dos heróis, mas não é esse significado que quero aqui usar hoje.

 

Temos então alguns mitos, ideias que se foram construindo, que são fantasiosas, mas que muitos aceitam e usam como verdadeiras e reais.

Escuso-me à explicação inicial. O português está em Timor por razões históricas e políticas.

Os três mitos de que quero falar-vos hoje, são então:

  1. O português vai entrar rapidamente
  2. A geração perdida
  3. A situação não está a mudar

Por que razão os considero Mitos?

Precisamente porque estas ideias são vistas e reconhecidas como verdadeiras.

Por que é necessário desmontá-los?

Porque elas condicionam a ação no terreno, desde a ação política à ação prática.

 

Vamos então ao primeiro deles.

  1. O português vai entrar rapidamente

Este mito nasceu nos anos pós-99. Lembro-me bem das conversas com timorenses, nessa época e de perceber que em geral, as pessoas acreditavam que, tomada a opção política de inscrever a língua na constituição, tudo ia ser fácil e rápido. Este discurso era secundado pelos discursos dos responsáveis políticos. Xanana Gusmão, Francisco Lú-Olo, Ramos-Orta, Mari Alkatiri, as próprias autoridades religiosas e até o atual Presidente da República, Taur Matan Ruak. Todos foram fazendo afirmações, em vários discursos desta época, dando a ideia de que tudo seria rápido e fácil, como já referi.

Ora, a este discurso, seguiu-se aquilo a que chamo Choque de expectativas. As coisas não mudaram assim tão rapidamente. O choque começa a notar-se em discursos a partir de 2007-2008 e acentua-se nos últimos 3 anos.

Lembro-me de, em 2014, ler uma entrevista do atual diretor do Instituto Nacional de Linguística, em que ele fala dos 30 a 35% de timorenses que falariam o português, e de ver muita gente a torcer o nariz a esse número.

Ao questionar, desta forma, a mudança, várias hipóteses se foram levantando.

Algumas delas foram mesmo colocadas aos professores que, como eu, integraram o Instituto da Língua Portuguesa da UNTL, agora Centro de Língua Portuguesa. As pessoas queriam saber o que poderia estar a atrasar este processo.

Seria uma questão de método? (parecia que o ensino das outras línguas, como o inglês ou o espanhol, no caso dos que iam para Cuba estudar, era mais eficaz, e os alunos aprendiam mais depressa)

Seria a falta de recursos, que todos conhecemos bem e que compromete muitas vezes as intenções?

Será que esta dificuldade de afirmação rápida do português tinha a ver com a pressão de outras línguas? O inglês? O indonésio? A própria questão das línguas maternas?

Poderia ter a ver com a dificuldade específica do português?

Todas estas hipóteses eu vi enunciadas aqui e ali, em discursos mais ou menos oficiais, especialmente desde que cheguei em 2014. Todas elas manifestavam, e manifestam, uma frustração latente. A frustração de se ter acreditado numa coisa que não aconteceu como fora anunciada.

Como investigador, a resposta que encontro para este mito, é precisamente a de que, estando, em parte, certas, todas as hipóteses que enunciei, o tempo é o fator decisivo aqui.

Como os linguistas sabem, uma língua não se fala por decreto. O processo de reintrodução da língua portuguesa em Timor-Leste, por todas as razões que referi antes, nunca poderia ser um processo rápido, a não ser que as Cooperações fizessem uma espécie de invasão cultural, trazendo milhares de professores, livros e comunicação social.

Não foi essa a opção e, a meu ver, bem. Teve riscos? Claro que sim, mas é um processo que está a ser construído para os timorenses, pelos timorenses. Claro que com ajudas importantes, como a que a Cooperação Portuguesa tem dado, ou mesmo a Cooperação brasileira.

Com muitos constrangimentos, o que se veio construindo foi um sistema de ensino em que a língua portuguesa, não sendo língua materna, também não é uma língua estrangeira. O que se passa hoje é um ensino da cultura e valores timorenses em língua portuguesa.

E desenganem-se os que acharem que isto é uma questão de didática simples e que basta ir procurar outros modelos. Cada caso é um caso, e o que aqui está a ser feito não foi feito, desta forma, em praticamente nenhum outro lado. Hoje podemos ir beber um pouco nas experiências de Moçambique ou Angola, por exemplo, mas eles iniciaram os processos há 40 anos. Timor começou há 15. E está a dar respostas que, em certa medida até servem de modelo para esses irmãos mais velhos da CPLP.

Desmontando o mito: o português vai demorar tempo a entrar em Timor-Leste, e não podia ser de outra forma. Não sei se há 15 anos era ajuízado ou sequer possível dizê-lo, porque não era isso que as pessoas esperavam ouvir, mas hoje é certamente. Há 15 anos estava tudo em causa. Hoje já não está em causa a decisão política da escolha do português e é necessário enquadrar as dúvidas.

 

  1. Há uma geração perdida

Este mito também vem já desde o início da década de 2000. Lembro-me de conversar sobre isto com a minha orientadora de mestrado e com outros colegas cá em Timor-Leste.

De que geração falamos?

Da geração que iniciou os percursos escolares por nos últimos anos da década de 90 do século passado, portanto, ainda sob o domínio indonésio. A ideia de que seria uma geração perdida explica-se rapidamente: é uma geração que passou pela grande mudança: começou num sistema educativo e cedo teve uma interrupção violenta. Depois, bom, depois voltou aos bancos da escola, mas sem bancos da escola.

É uma geração que acedeu a um sistema de ensino que estava ainda a nascer, depois de ter começado noutro, com muitas diferenças.

Grupos de alunos que fizeram percursos escolares errantes, porque nem do lado dos professores era fácil encontrar estabilidade (falta de professores, falta de habilitações, falta de domínio de língua), nem essa estabilidade se encontrava do lado do sistema (escolas, estruturas de educação e ministério), porque também aí faltava muita coisa.

Recordo que uma das minhas preocupações era perceber em que língua, ou línguas, iriam estes alunos ser fluentes, especialmente no que à leitura e escrita diz respeito.

Ficariam competentes em bahasa indonesia (usada ainda no ensino secundário até há 3 ou 4 anos)? Em português (quando a maioria dos professores apresentava ainda níveis de proficiência muito baixos)? Em inglês (dada a proliferação de materiais que já em 2001-2002 eram distribuídos gratuitamente por todo o lado)?

Este mito, não o era, de facto. Uma parte dos alunos que passaram pelo sistema educativo sofreram este efeito negativo, que não se manifestou apenas no domínio da língua, mas em outras competências básicas, como a numeracia ou o conhecimento de história, cultura geral ou de ciências. No fim dos percursos escolares, para os que não abandonaram, os problemas mantiveram-se, com baixas competências profissionais e baixíssima empregabilidade.

Só que, como sempre, os riscos podem transformar-se em oportunidades. Uma vez mais os timorenses mostraram, perante um problema, uma enorme capacidade de adaptação.

As elevadas taxas de desemprego, com críticas à capacidade e qualidade da mão de obra timorense, mostram o efeito negativo desta realidade, mas os inúmeros projetos de criação do autoemprego, a força que tem atualmente o ensino vocacional, a energia que se sente um pouco por todo o país, com especial incidência nas áreas urbanas, mostram que esta geração está a dar a volta à adversidade.

Nunca Timor-Leste teve tantos estudantes no ensino superior como agora. E estes são exatamente os alunos da dita geração perdida.

Poucos países tiveram de estruturar, de raiz, toda a sua administração pública, e aí estão os jovens timorenses em muitos desses lugares. Conheci-os na UNTL, no Parlamento, nos Ministérios. Gente que chega aos lugares e não só tem de desempenhar tarefas para as quais não vinha bem preparada, como dedica ainda longas horas de estudo, em formação contínua ou em línguas, por exemplo.

E eu pude testemunhar como, apesar das dificuldades, que as há e não quero aqui esconder, eles estão a lutar. Observei-o nos estágios, observo-o nas escolas secundárias, do ensino geral e vocacional.

E relembro: para a maioria dos jovens desta geração, a única língua que aprenderam de forma mais sistemática, em termos escritos, foi ainda a bahasa indonesia.

A chegada destes jovens à idade adulta poderia ser um grave problema na implantação do português.

Não está a ser e isso desmonta o mito de que se tratava de uma geração perdida.

 

  1. O terceiro mito, é o de que a situação não está a mudar.

Este mito vem na sequência dos dois anteriores e é mais recente.

Comecei a ouvir isto a partir de 2012, na altura das celebrações dos 10 anos da restauração da independência.

Resulta da frustração da geração mais antiga, por verem que as mudanças não foram tão rápidas como esperado, e de um certo cepticismo em relação a esta nova geração.

Este mito eu pode desmontar-se rapidamente. O que estamos a observar neste momento é a chegada à Universidade de alunos que iniciaram os seus estudos no início dos anos 2000 (2001, 2002, 2003...).

Estes alunos começam a apresentar um domínio de língua portuguesa muito interessante. E não se trata de um fenómeno localizado, como aconteceu nos anos 70 do século XX, em que apenas uma elite acedia à língua portuguesa. Hoje, pelas escolas secundárias dos vários distritos, é possível ver e ouvir já bom português.

Por exemplo, por alturas das comemorações da chegada dos portugueses a Timor-Leste, em novembro de 2015, alunos do ensino secundário de todo o país protagonizaram debates e concursos de discursos, em língua portuguesa, com um nível muito bom.

Esta geração é a que pôde fazer já todo o percurso escolar até à universidade em português.

Contributos de muitos projetos de formação, em língua portuguesa e em didática, com a colaboração das Cooperações de Portugal e Brasil, renovações curriculares, apoiadas por Universidades Portuguesas, elaboração de manuais escolares

(deixem-me só parar aqui um pouco, porque às vezes esquecemo-nos destes detalhes: só há 4-5 anos os alunos do ensino secundário têm manuais escolares em português. 4-5 anos. no 2.º e 3.º ciclo, há 7-8 anos. E como sabemos estes livros, na maioria dos casos, nem sequer estão nas mãos dos alunos.)

com todos estes contributos e com o esforço dos professores timorenses, temos alunos que fizeram o seu percurso em língua portuguesa até à universidade. Nem sempre bom, nem sempre com qualidade, como mostram os estudos de literacia, mas é uma nova geração de alunos.

Assim sendo, como está a situação?

É mito que as coisas não estejam a mudar? É, claramente!

Hoje, na Universidade, por exemplo, sente-se uma pressão para que os professores aprendam português.

Isso não é novo, dirão alguns. É verdade! Desde que cá vim pela primeira vez, os reitores, por pressão direta e do próprio ministério, vinham falando disto. Só que essa pressão, de cima para baixo, não produziu os efeitos desejados. Muitos de vocês sabem como era. Turmas abertas, 40 inscritos, 20 a começar os cursos e poucas semanas depois, os números baixavam drasticamente. Hoje a pressão vem de baixo. Hoje os professores já dizem que os alunos sabem mais português do que eles. E isso mostra o quanto as coisas estão a mudar. Hoje os alunos da UNTL já não aceitam ter aulas em bahasa indonesia, porque não aprenderam a ler e a escrever nessa língua, e exigem o português ou o tétum.

Tudo bons sinais.

E sinais de que, efetivamente, é o sistema de ensino que está a operar a grande mudança. O português está a afirmar-se por esse lado.

Se considerarmos que, pelos números dos Censos, quase 1/4 da população de Timor-Leste está integrada em sistemas de educação, entre escolas e universidades, então os números de que falava o professor Benjamim Corte Real não andarão longe da realidade. Atualmente, entre 30 a 40% da população tem já um contacto regular com o português e esse número deve continuar a subir rapidamente nos próximos anos. Isso significa que dominam a língua? Ainda não, mas é um primeiro passo.

Mito desfeito. A situação está a mudar, e agora numa velocidade mais acentuada.

 

Sugestões

Para finalizar, deixem-me aproveitar que estou nesta casa, para deixar algumas sugestões.

Como eu disse ali atrás, uma língua não se fala por decreto.

Para que as pessoas a usem é preciso que haja necessidade e oportunidade. Uma não anula a outra. Podemos ter necessidade de falar uma língua e não ter a oportunidade para o fazer, e também podemos ter a oportunidade de falar, mas se não temos essa necessidade, não o fazemos.

É necessário criar então a necessidade e a oportunidade.

Formação de professores

Na escolas, a necessidade está criada, com o uso da língua na instrução e nos materiais de ensino. Só que muitas vezes a oportunidade ainda não surge, porque é possível fazer isso noutra língua.

A formação de professores para a implementação de uma política de língua é fundamental.

Em 2002, notei uma disfuncionalidade do sistema de formação que ainda hoje se manifesta: a atenção dos projetos foi quase sempre para o secundário e para o 3.º ciclo. Também houve formação e apoio para o 1.º ciclo e pré-escolar, mas muito menor. Continuo convicto de que é aí que se deve centrar o maior esforço. Com bons professores, bons currículos e bons materiais no pré-escolar e no 1.º ciclo, nos primeiros anos, conseguiremos criar uma geração de novos estudantes que farão, nos anos seguintes, o que atualmente os universitários fazem aos seus professores: pressão de baixo para cima, que é sempre muito mais eficaz. Um exemplo dessa atenção invertida, é o novo concurso aberto para contratação de formadores portugueses. Mais uma vez o Secundário e o 3.º ciclo são o centro das atenções.

Independentemente dos currículos (e hoje não vou falar disso), é no 1.º ciclo (e pré-escolar, quando o há), que se estabelecem as bases para as aprendizagens. Um aluno que aprenda a pensar, a estruturar as ideias, a ler e a escrever adequadamente nos primeiros anos, será sempre um estudante mais ativo.

É preciso então insistir na formação dos professores. Na formação inicial e na formação contínua. Não quero aqui dourar a pílula. Nem tudo está bem. Há muito a melhorar. E um professor que tem dificuldades a pensar, falar, ler ou escrever em português, dificilmente ensinará em português. Não metamos a cabeça na areia. Não quero dizer, com isto, que os professores timorenses não fazem um bom trabalho ou não sabem português. Já me acusaram disso, mas eu não tenho medo das palavras. Há muitos professores sem as qualificações adequadas, a dar aulas de disciplinas para as quais não têm formação ou competência, e com dificuldades de língua portuguesa.

Além disso, com um currículo bilingue, como o que atualmente está em vigor, a exigência sobre os professores é ainda maior. Alguns podem pensa que um currículo bilingue é mais fácil para os professores. Não é. Obriga a uma prática ativa de bilinguismo. Essa prática, que já era corrente na maioria das escolas, de forma passiva, é agora ativa. E isso leva a que o professor precise de reconhecer a presença das várias línguas e as suas múltiplas interferências. Daí a necessidade de insistir na formação em didática e em língua.

Livros e bibliotecas

Este ponto quase nem seria necessário destacar, tal é a evidência. A oportunidade nasce de muitas formas, mas se eu não tiver livros, nunca tenho oportunidade de ler. É preciso manter um esforço continuado nesta área. Até que as famílias comecem a ter livros em casa e a ter hábito de comprar livros, ainda muito tempo passará.

Eu também venho de uma família em que praticamente não havia livros. O primeiro livro que me lembro de ter, assim meu, foi um pequeno livrito, de umas 6 páginas, oferecido pela minha professora da escola primária, no 1.º ano. Ainda hoje me lembro do cheiro e de quase todas as páginas.

Deixem-me ironizar um pouco: Se é possível haver paletes, sim, paletes, de livros de inglês, de qualidade duvidosa, à venda no Timor Plaza, pelo menos desde 2014, a 50 cêntimos, tem de haver forma de fazer chegar livros, de qualquer tipo, em português, a todos os cantos de Timor-Leste.

Infelizmente, nesta matéria, de 2002 para agora evoluímos pouco. Lembro-me de, nessa altura, no centro de Língua do Camões, com alguns colegas que aqui estão na sala, termos umas quantas Gramáticas Ativas e uns Dicionários do professor Luís Costa, que serviam para as aulas e eram religiosamente recolhidos para podermos usar na turma seguinte.

A Feira do livro de 2003 quase dava origem a motins, tal foi a procura.

Nessa altura, ONGs australianas distribuíam paletes de livros em inglês pelos mercados de todos os distritos. Gratuitamente.

Por outro lado, alguns dos primeiros livros com que muitos alunos terão contacto, são os manuais escolares. É absolutamente necessário que os manuais passem para as mãos dos alunos. Que passem a ser deles. Porque depois esses livros ficam lá por casa e novamente a necessidade não existe, mas a oportunidade sim.

E é também preciso criar uma rede de bibliotecas municipais, que depois apoiem as bibliotecas escolares. Sei que há projetos, mas é uma necessidade. E enquanto toda essa estrutura não se monta, devia manter-se a aposta nas bibliotecas itinerantes.

Eu ainda sou do tempo das carrinhas da Gulbenkian, em Portugal. Andava no 5.º ou 6.º ano e era a forma de ter acesso a biblioteca. A escola, apesar de nova, não tinha biblioteca.

Ainda neste capítulo, é necessário mais apoio e divulgação de autores timorenses. Novos e velhos. Conhecidos e menos conhecidos. Havendo tão pouca produção, tudo tem de ser pretexto para ir aumentando esse espólio. As escolas são um bom terreno para isso, porque o mercado de compra de livros é praticamente inexistente e não há forma de alguém ser escritor em Timor, vivendo das vendas. Mas se as obras forem escolhidas para ser estudadas e lidas nas escolas, aí o mercado passa a existir.

Comunicação Social

Novamente no binómio necessidade-oportunidade, temos a comunicação social.

Detenhamo-nos um pouco neste ponto. Um timorense médio, que não tem computador nem internet em casa, que oportunidades tem para ver e ouvir português? Meio noticiário na RTTL, alguma programação da RTPinternacional, geralmente sem qualquer relevância cultural para Timor-Leste, às vezes, a Antena 1 Internacional, meia página em alguns jornais...

Se relembrarmos que um terço da população tem menos de 25 anos, nenhuma destas opções chega a ser opção.

Alguns jovens timorenses acham mesmo que em Portugal não há canais generalistas e com programação atrativa, como os canais indonésios. Quando a Benvinda de Jesus apareceu no The Voice em Portugal, foi uma surpresa!

É necessário criar condições para que muito mais canais de conteúdos em Português, modernos e com capacidade de competir com a programação indonésia, cheguem à casa dos timorenses. Ver televisão é uma necessidade dos dias de hoje. Ver em português, depende da oportunidade.

Nos jornais, revistas e rádios, o mesmo se passa.

 

Controlo legislativo

Este ponto leva-me ao próximo, que é o controlo legislativo.

Apesar de confessar a minha ignorância neste ponto, sei que é possível obrigar a que a administração pública, os órgãos de comunicação social e muitas outras entidades usem, de facto ao português (e já agora, por arrasto, o tétum).

É ainda comum que muitos serviços apresentem informações em inglês, noutros casos em bahasa indonesia. Se era justificável há uns anos, penso que neste momento isso pode ir progressivamente desaparecendo.

Mesmo no setor privado é possível intervir. Não se pode proibir um restaurante ou outro estabelecimento de ter informação na língua que entender, mas pode obrigar-se a que toda a informação para o público esteja, também, nas línguas oficiais. Há dias encontrei uns produtos de origem local, no supermercado. Gostei muito e comprei, mas toda a informação da embalagem vinha em inglês...

No cinema, é a mesma coisa. Todos dos filmes que são mostrados aqui em Timor têm em Portugal e no Brasil versões com dobragem e com legendas em português. Não se percebe como se mantém em inglês, com legendas em mandarim e em bahasa indonesia. E é assim que estão a passar diariamente, mesmo os filmes para as crianças.

Reforço das relações económicas com países da CPLP

Por fim, o reforço das relações económicas com países da língua portuguesa.

Perguntarão em que medida isso pode contribuir para o português.

Relembro, que foi precisamente por razões comerciais (não só, mas principalmente) que os portugueses cá chegaram. Não fosse o comércio, principalmente do sândalo, e era pouco provável estarmos aqui hoje a falar de português e em português.

Volto à necessidade e oportunidade. Com tanto desemprego, o normal é que os jovens olhem para outras paragens, para outros países. Atualmente, a diáspora timorense espalha-se pela Europa, principalmente em zonas em que se fala inglês, pela Austrália, por Portugal...

Ao mesmo tempo, chegam-nos notícias de que nunca houve tantos chineses a aprender português, de que o interesse dos espanhóis também não pára de aumentar, de que na América Latina e nos Estados Unidos se aprende cada vez mais português. Além de sermos simpáticos e bonitos, a verdade é que quem procura o português hoje, o faz por causa das oportunidades de negócio ou de trabalho. E os timorenses precisam imenso delas. Além disso, este reforço poderá trazer para Timor algumas empresas da CPLP, em que já se fala português, e de outros países, que querem fazer negócios na CPLP e podem aqui ver uma boa porta de entrada.

 

Três notas finalíssimas

Uma oportunidade

Dada a crescente procura pelo português (só na China já há mais de 30 universidades a oferecer licenciaturas em língua portuguesa) na Ásia, Timor poderia começar a posicionar-se para ser um exportador de cursos de língua portuguesa. Sabemos que Macau faz um pouco esse papel, e tem crescido e apostado nisso nos últimos anos, mas com boa formação em LP, Timor pode começar a atrair alunos do Sudeste Asiático, que queiram aprender português, uma vez que é muito mais barato vir a Timor do que ir à Europa ou ao Brasil. A UNTL e mesmo outras Universidades e Institutos podem ter aqui uma boa fonte de receitas.

 

O surgimento de uma variante timorense do português

A afirmação de uma variedade é coisa lenta e demora muito tempo. Implica que aquilo que para um falante de outra variedade surge como um erro (a simplificação da conjugação verbal, diferenças na uso das preposições, etc...) passe a ser visto e reconhecido, pela elite política, cultural e académica, como norma. E implica que essa norma seja tão forte que se assuma que essa é a forma adequada e se passe a ensinar assim a língua. Sem querer alongar-me, sempre posso dizer que, pelo que observo, há dois entraves a que essa variedade timorense da língua portuguesa se afirme nos tempos mais próximos (diria próximas décadas):

1) A língua portuguesa em Timor-Leste está num processo de reintrodução. Por isso mesmo, ela não é estável neste momento. O nível vai mudando de acordo com a idade e os contextos e o que hoje é uma marca amanhã pode já não ser. Excetuando os falantes mais velhos, que agora já não estão em sistemas de aprendizagem (e que são uma minoria), a população timorense está sujeita neste momento a inputs de língua muito variados e variáveis e assim não há condições para se estabelecer um padrão;
2) a tal elite política, cultural e académica, que há de dar validade a essa variante, ainda está muito ligada às suas "raízes" linguísticas, sejam elas do português europeu ou do português do Brasil (ou até de Moçambique). Assim, qualquer variante a essa raiz (que para eles é vista como a certa) é um erro e não uma variante da língua portuguesa. Daí que não a validem.

No ano passado, no II.º Simpósio de Educação, na UNTL, essa questão levantou-se. É relevante fazer-se trabalho de recolha de corpus linguístico, nos vários estratos da sociedade, para que se vão começando a perceber as zonas de mudança e as zonas estáveis. Mas isso serve apenas para que se comece um processo que é, como disse atrás, longo. O João Paulo Esperança fez alguns levantamentos, logo em 2000, 2001 e continua por cá a recolher e trabalhar. A Dra. Maria José Albarran também fez algum trabalho até 2004 e mais recentemente o investigador Davi Albuquerque, num dos poucos doutoramentos feitos especificamente sobre questões linguísticas em Timor-Leste, voltou a apresentar algumas marcas que podem vir, a prazo a estabilizar.

 

Uma nota sobre a estabilização do tétum

Esta não é a minha área e portanto aqui sou apenas um mero observador. O Instituto Nacional de Linguística, pela mão do Doutor Benjamim Côrte Real, o João Paulo Esperança, pelo conhecimento que acumulou sobre o tétum e as restantes línguas de Timor-Leste, o Professor Luís Costa, pelo labor empregado nos vários instrumentos (gramáticas e dicionários) que produziu, a igreja, pelo trabalho dedicado ao tétum e mesmo outros mais anónimos, têm contribuído para uma afirmação da língua tétum.

Várias questões se têm levantado, contudo, sobre a ortografia do tétum, a começar pelo facto de muitos não dominarem a dita ortografia oficial.

Valendo pouco, deixo aqui uma comparação, para que com as devidas diferenças, relativizemos um pouco a questão.

Em Portugal, só com o alargamento da escolaridade à generalidade da população se estabilizou a ortografia (aconteceu no final do século XIX e início do séc. XX). Até essa altura, a ortografia era uma questão menor. Cada escritor usava uma ortografia diferente e havia textos para todos os gostos: uns mais próximos das raízes latinas e outros a aproximar-se da fala.

Aqui, parece-me, pode acontecer idêntico movimento com a ortografia do tétum. Com o alargamento do seu ensino formal e sistemático, na forma escrita, nas escolas, assistiremos a uma estabilização. Mas não pensem que também no tétum isto se resolve rapidamente.

Em Portugal, tivemos a primeira reforma ortográfica do português em 1911, portanto há mais de 100 anos, e ainda andamos às voltas com a ortografia, com o Acordo Ortográfico de 1990!

O tétum precisa de uso. Precisa de quem o escreva e leia, e vá limando as arestas e burilando os entalhamentos.

 

 

Em síntese, queria deixar a ideia clara de que há dificuldades, mas também de que há muito boas oportunidades para que o português estabilize e se afirme em Timor-Leste.

 

Obrigado pela atenção.

 

 

publicado por Ricardo Antunes às 01:22

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