"Ninguém é tão ignorante que não tenha algo a ensinar. Ninguém é tão sábio que não tenha algo a aprender." Pascal

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Jun 14

Caiu-me na timeline do Facebook, pela mão do João Lima, um interessante texto, aparentemente dedicado a dizer mal do Acordo Ortográfico (AO90).

Um texto para leigos, é certo, e com algumas coisas interessantes. Apenas um senão, que faz toda a diferença: é aqui usado como arma de arremesso contra o Acordo ortográfico, quando nada do que aqui é dito diz respeito ao AO90.

Vamos a alguns exemplos (leiam o texto original, para perceberem isto...)

1. Diz o Nuno Pacheco (NP): "Portugal e Brasil, mantendo unidade ortográfica até aos últimos tempos da monarquia portuguesa". Em que se baseará o autor para fazer esta afirmação, se é sabido que antes da primeira República não houve qualquer preocupação, oficial, com a questão? Cada um escrevia como queria e daí não vinha qualquer mal ao mundo. Com a institucionalização de uma escola para todos, alfabetizando em português, aí sim houve a necessidade formal de uma ortografia única.

2. NP: "Cabo Verde e São Tomé e Príncipe tinham crioulos próprios". Isto é dito como se se tratasse de coisas diferentes... Não é. Os crioulos resultaram precisamente do contacto das línguas locais com o português. Quer se defenda a teoria eurogenética, afrogenética ou neurogenética, uma das bases lexicais é sempre o português.

3. NP: "se os movimentos de libertação africanos optaram pelo português no momento de escolher uma língua oficial, isso deveu-se à necessidade de evitar divisões (escolher uma língua em detrimento de outra acirraria tribalismos) e ao mesmo tempo de aproveitar o esteio do conhecimento já semeado pelo português.". Se perguntar, ainda hoje, aos líderes desses países (e de Timor Leste), a resposta aponta sempre no sentido de a língua fazer parte da identidade nacional. Esse lado mais prático, ligado à unificação territorial, também estava lá, mas se pensarmos que nesses países a grande maioria da população, nessa altura, não dominava o português, o argumento isoladamente (como é aqui usado no texto) cai por terra.

4. NP: "está na base dessa aberração chamada “acordo ortográfico”, que não só é totalmente inútil do ponto de vista prático (como se vê, para um mesmo acontecimento, global e recente, Portugal fala em Mundial de Futebol e o Brasil em Copa do Mundo, sem que nenhum acordo resolva tais diferenças, nada subtis – ou sutis, como se dirá no Brasil)". Qualquer pessoa medianamente informada saber que ortográfico diz respeito à ortografia, ou seja, à forma de escrever as palavras e não à semântica ou ao léxico. Quer isto dizer que nunca o Acordo Ortográfico pretendeu acabar com os sinónimos da língua, ou do idioma, só para dar um exemplo. Então, qual a relevância de se usar isso como argumento para falar do AO90? Desinformação? Fica mal ao sub-diretor do Público. Como ele realça ainda na mesma afirmação, aquilo de que o AO90 trata é da forma de escrever e não da forma de falar. Daí que uns digam (e bem) subtis, e outros digam (e bem) sutis. E o que o AO90 traz, em grande parte, é a clarificação de que, genericamente, se deve optar pela grafia mais próxima da fala - escreve-se facto quando se diz faCto e escreve-se fato quando se diz fato, independentemente do significado, até porque esse exemplo mostra que a semântica e léxico resolvem outro problema: fato, no Brasil, nunca é roupa. Claro que há sempre iluminados, e ainda há dias ouvi que numa entrevista para leitor do Instituto Camões (que deveria ser o bastião da difusão da língua, com toda a sua diversidade - por isso, caro Nuno Pacheco, tem aqui uma boa matéria), alguém, que não o candidato, terá afirmado que isso das variedades dialetais e socioletais já não existe, desde que existe televisão. :P

5. NP: "Foram criadas novas e artificiais diferenças, impostas à fala e não determinadas por esta". Esta foi a linha que me fez escrever isto tudo. Exemplos, meus senhores, quero exemplos. Exijo exemplos, para que a discussão não morra de esterilidade já aqui.

6. NP: "depois da vigência oficiosa do acordo (que não é oficial em país algum) continuaram a ser produzidos dois documentos, um para Portugal e outro para o Brasil. África, como de costume, continua arredada destes malabarismos.". O AO90 está em vigor em Portugal e no Brasil. Mas não só: todos os países da CPLP já o ratificaram, com exceção para Angola, que preferiu, e bem, aprofundar e estabilizar o seu Vocabulário Ortográfico - na prática, a grande contribuição de cada um dos países para este Acordo. Em Moçambique, o sétimo país da CPLP a ratificar, em 2012, houve mesmo uma declaração dos escritores nativos a saudar a decisão política. Se está ratificado pelos estados é oficial.

7. NP: "Ora devíamos, isso sim, estar a trabalhar no sentido de reconhecer (e aceitar como naturais) as diferenças na evolução do léxico, do vocabulário e das estruturações frásicas nos vários países onde o português é língua oficial, mas também de consignar tais diferenças (vocais ou gráficas) como património comum, em lugar de as escondermos como se fossem “aleijões” da língua e indesejáveis “impurezas”. " Caro NP, aqui entrou definitivamente fora de mão. O "atraso" que tem sido apontado à implementação plena do AO90, resulta precisamente desse trabalho. O Vocabulário Ortográfico Comum é apenas a base, mas nunca como hoje se trabalhou sobre esses aspetos da língua. E volto a relembrar que nenhum deles (léxico, semântica e sintaxe) diz respeito ao AO90. Nenhum.

8. NP: "tem estado arredado do trabalho dos bonzos das academias". Escuso-me a comentar quando a verborreia deriva para a boçalidade. Qual o propósito de chamar bonzo aos académicos? Já agora, bonzo vem do japonês bózu, «religioso ordinário ou ignorante», o que mostra que não é difícil alterar a escrita em função da fala...

Por fim, que a conversa já vai longa, confirmar que sim, que a língua tem muitas variedades, mas que isso não significa que para escrever a mesma palavra, se a ela corresponder um som mais ou menos único no espaço lusófono, se não use uma mesma forma ortográfica. Dizer que isto é retirar-lhe liberdade e diversidade é não perceber que na sua liberdade e diversidade, o português nos deu um Mia Couto (que, aliás, saudou também a ratificação do AO90 no seu país) ou um Herberto Hélder ou um Saramago. E o que tem isso a ver com o AO90? Nada.

publicado por Ricardo Antunes às 09:52

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